Para gostar de ler
Sentir gosto, ouvir, conhecer o frio e o quente, cheirar, ver. O escritor e cartunista Ziraldo acha que ler e escrever deveria ser encarado assim, como um dos sentidos do ser humano. 'Poder escrever o que sente e entender o que lê é tão importante quanto', afirma. E ele não está falando de alfabetização, de juntar sílabas, saber pronunciá-las e entender do que se trata. Mas, sim, do efeito de ler: ser surpreendido, refletir depois, querer contar para os outros. 'O livro infantil desperta o gosto pela leitura', diz o cartunista. Tanto nas crianças quanto nos adultos.
E por que a leitura não pode dar prazer à criança, como assistir à TV, falar no MSN, ouvir iPod e jogar no computador? O verbo 'precisar' pode ser uma explicação. Dificilmente ele se dá bem com o substantivo 'prazer'. Pois um tem obrigação embutida, o outro, escolha. Imagine se obrigássemos as crianças a comer chocolate ou pipoca, jogar futebol, dançar, dar risada...
Por mais esquisito que pareça, prazeres precisam ser apresentados. Você precisa ter acesso, provar e gostar, ou não. Por que as crianças preferem outras atividades, em vez de ler? Será que elas têm livros disponíveis? Há algum adulto - aquele ser que criança adora imitar - por perto delas que ame livros? Se você sabe que livro é importante, mas se perdeu nos argumentos, continue a ler esta matéria.
Você já se deu conta do que há no mundo da literatura? Ele nos dá abrigo, refúgio, medo, conforto, mais dúvidas, novidades, frio na barriga... É lá que redescobrimos que não somos máquinas: temos sentimentos - bons e ruins. O mundo da leitura é tão rico que as crianças vão querer ler tudo e ficar com gostinho de 'quero mais'. E uma boa notícia: como todo bom hábito, é melhor que seja desde cedo, claro, mas nunca é tarde para começar.
Disciplina não é obrigação
Principalmente nos corridos dias de hoje, em que tanto se tem a fazer com tão pouco tempo de prazer, ler é um ato que exige disciplina. É necessário dedicar uma hora do dia, um tempo da aula, uma passada na livraria, uma parada na biblioteca.
E precisa iniciativa. Ler é bem diferente de assistir à TV. Todos nós estamos muito acostumados aos estímulos fáceis. Mas com o livro não é assim. Nós temos de ir atrás dele, abrir, ler, aceitar, rejeitar. 'O livro tem um ritmo mais humano', afirma Eva Furnari, uma das autoras de livros infantis mais importantes do Brasil. É por essas e por outras que o contestador Ziraldo causa polêmica com a frase 'ler é mais importante que estudar'.
Para ele e para tantas outras pessoas, o que bagunça essa relação de prazer é a obrigatoriedade. 'Tem de parar com essa história de que ler é dever', diz Ziraldo. Eva Furnari observa outro lado. 'Não acho ruim a criança serobrigada a ler quatro livros por ano. O problema, às vezes, está na adequação do livro ou nas formas de avaliação.'
Para Maria José Nóbrega, educadora, pesquisadora e assessora do Programa Ler e Escrever da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, o papel do adulto é adequar orientação a liberdade. Ou seja: a criança precisa ser encaminhada até que ela mesma possa fazer suas escolhas também. 'No caso de uma leitura mais difícil - e é bom que seja, pois sem desafios a criança não sai do lugar - o professor deve acompanhar, ler junto, conversar sobre.'
O escritor, pesquisador e ilustrador Ricardo Azevedo vê outro nó nessa história. Quando a literatura infantil foi incorporada à escola, passou-se a procurar nela uma utilidade direta e objetiva. E, pior: crescemos assim, e não faltam por aí adultos procurando função para a ficção e para a poesia. Mas toda a arte - no caso, a literatura -trata dos temas que ninguém pode ensinar. 'Todos os tipos de livros são importantes, mas é preciso diferenciá-los. Imagine que uma criança pressuponha que todos os livros, no fundo, sejam didáticos. Ela vai ler um de poesia partindo da mesma premissa de que está estudando e se vê obrigada a captar, entender, aprender uma lição', diz Ricardo. E será que assim, procurando utilidade para tudo, alguém aprende a gostar de ler?
O que é o quê
Os livros didáticos são objetivos, conclusivos, têm uma linguagem impessoal e neutra. Existem para transmitir conhecimento e não dão margem a nenhum tipo de interpretação. Eles têm uma função. A literatura vai para o outro lado. É a arte feita de palavras. Esses livros recorrem ao discurso poético e são cheios de subjetividade. Lá encontramos um ponto de vista inesperado, fala-se sobre aquilo que sentimos e que, muitas vezes, nem sabemos sentir. Personagens de literatura são como nós: ambíguos, contraditórios, confusos, cheios de dúvida. E são atemporais. 'Desde que o homem é homem, as pessoas se apaixonam, têm medo da morte, confundem realidade com fantasia.
A literatura trata de medos que teremos a vida inteira', diz Ricardo. 'A resolução mágica das histórias entra no imaginário da criança, fazendo com que ela acredite ser capaz de sair de situações que dão medo', afirma Virgínia Balau, psicopedagoga especializada em aprendizagem da leitura e escrita. Assim, a criança aprende de uma maneira não objetiva. É isso que pode se perder nos livros chamados paradidáticos.
Poderiam ser apenas um apoio educativo para tratar de temas paralelos às matérias do currículo regular, como ecologia, educação sexual, prevenção de doenças ou cidadania, mas há publicações que também usam a linguagem poética e de ficção - e contam histórias, com personagens e tramas - para falar de assuntos subjetivos, como medo e morte. Como os didáticos, têm a intenção de transmitir uma única interpretação.
Imagens convidam à leitura
Há muitas ofertas no mercado para que a relação com os livros comece bem cedo. Desde os de plástico, para a hora do banho, até os animados, com figuras saltando aos olhos, ou os de grandes imagens, que impressionam as crianças. E tudo é válido. Elas já começam a tocar, entender que daquelas lindas páginas saem histórias. Começam a ver com os olhos da imaginação.
É por eles também que se inicia outra relação tão importante para a criança: a arte visual. 'São, sobretudo, experiências do olhar', diz a educadora e escritora Fanny Abramovich no livro Literatura Infantil, Gostosuras e Bobices (Ed. Scipione). As ilustrações nos livros infantis ganham cada vez mais possibilidades e, de quebra, qualidade.
Basta dar uma olhada nas capas dos 30 melhores lançados no último ano que CRESCER e 30 jurados listaram especialmente para esta edição. São inúmeras técnicas, tipos de traços, cores e formas. 'Fazer livro para criança é fazer um objeto de arte', diz o ilustrador André Neves. Na hora de apresentar um livro, não deixe de mencionar, também, o ilustrador. É maravilhoso a criança olhar a publicação e poder reconhecer o traço de alguém. Ilustração também se lê.
Por isso que ler não é um ato individual apenas. É uma prática social. 'Quem é leitor faz parte de uma comunidade', diz Maria José Nóbrega. Como fazer a criança gostar de ler? Leia para ela! 'Leia até que ela sinta inveja de você', diz o poeta Rubem Alves. 'Imagine uma criança pegar a mãe às gargalhadas com um livro nas mãos? Ou tão concentrada que pede para não ser interrompida? Ela vai querer isso também', diz Ricardo Azevedo.
'Difícil falar em modos de operação, métodos ou táticas infalíveis quando o assunto é criança e leitura. A única ponte possível para juntar isso é uma palavra mágica de nove letras: liberdade', diz André Muniz de Moura, especialista em literatura infanto-juvenil. 'É fundamental conhecer bem a criança, seus temas de predileção. Não concordo quando a pessoa diz 'não gosto de ler'. Ela ainda não encontrou o livro certo, aquele que a fisgasse', afirma.
Ter contato com literatura infantil é uma daquelas coisas que você ou nunca fez, quando adulto, ou faz com um prazer a mais, depois que tem filhos. Os livros fazem a ponte para a vida que ajudamos a criança a conhecer. 'Quando se lêem histórias para crianças, elas estão aprendendo em um nível e nós, em outro', afirma a psicanalista americana Clarissa Pinkola Estés, especialista em contos, e autora do livro Contos dos Irmãos Grimm (Ed. Rocco).
Ler é viajar. Como na história de O Livro das Palavras (Editora do Brasil), mais recente obra de Ricardo Azevedo. Nele, um dicionário descobre que não basta saber o significado das palavras. Ele precisou sair pela vida para escutar o apito do guarda-noturno, ver o azul do mar, entender o amor pela poesia de Camões. E dando esta chance à criança, quem sabe seu filho - e até você - possa criar uma relação com o livro como a da Júlia que, no alto de sua sabedoria de 10 anos de idade, já define tão bem. 'Quando a gente lê, consegue imaginar as coisas, sonhar e aprender sobre o mundo. Tudo de bom.'
Fonte: Revista Crescer, junho/2007
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