quarta-feira, 9 de setembro de 2009

A construção de relações e da aprendizagem no contexto da Educação Infantil: uma contribuição ao treinamento de babás.



“Reinventamos e reeducamos a nós mesmos, junto com as crianças. Não apenas o nosso conhecimento organiza o conhecimento das crianças, como também o nosso modo de ser e de lidar com sua realidade influencia similarmente o que conhecemos, sentimos e fazemos.”
Carlina Rinaldi



Diante da heterogeneidade das infâncias citadas durante o Curso de Especialização em Educação Infantil e das contradições de nossa sociedade, a fim de fazer com que a Educação cumpra seu papel atualmente, me parece importante abrir os caminhos entre os diversos grupos de adultos envolvidos nos cuidados e na educação infantis, baseado nas propostas estudadas até aqui. Mostrou-se bastante clara a interseção entre o que se faz com crianças no contexto escolar - e os desafios impostos - e o que se busca em meu percurso profissional junto a familiares e a demais profissionais de apoio (babás).
Como coordenadora do Projeto CRIANÇA EM FOCO, que tem sua proposta baseada em orientação familiar, percebo diversas questões que circulam nas relações entre pais, avós, escola e babás. Nesta tentativa de aproximar minha prática dos conhecimentos adquiridos ao longo deste curso, me parece necessária uma breve investigação do conceito de infância nos diversos contextos socioculturais.
Diversos autores nos mostram como, historicamente, a criança era vista com muito pouca importância, até mesmo devido ao fato de a grande maioria não sobreviver às doenças nos primeiros anos de vida. A taxa de mortalidade infantil era tão elevada que não justificava a visão da infância como uma fase em si, mas como uma época de passagem para a vida adulta, um vir-a-ser. Com o movimento higienista do séc. XIX e o início do controle de mortalidade infantil feito através das primeiras experiências de vacinação, começou a surgir a necessidade de pensar o bem-estar das crianças.
Das mães, que outrora deixavam seus filhos aos cuidados de amas, passou a ser exigido uma maior presença ao lado dos filhos. Da Medicina, exigiu-se um olhar preventivo. Da Educação, finalmente, exigiu-se que se apropriasse de estratégias para o desenvolvimento de espaços próprios para o desabrochar de potencialidades…e o cenário que se delineou foi propício ao avanço de todas as áreas afins, tendo em vista um objetivo em comum: dar conta de uma nova categoria, a infância. Segundo Daise Nunes (2000), com a modernidade, a infância passou a ser reconhecida como tempo diferenciado. Os jogos e as brincadeiras passam a mediar a relação da criança com o mundo. O brincar, na interação com o adulto, é cada vez mais valorizado na Educação Infantil e, utilizando uma expressão Vygotskyana, cria zona de desenvolvimento proximal; a “imaginação possibilita operar em um nível que não o da realidade imediata” (Cerisara, 2000). Mostra-se importante, porém, remeter os educadores à sua própria infância, seus jogos e brincadeiras, frustrações e alegrias.
O educador precisa se subjetivar como pessoa, como profissional, como uma classe, vivendo em uma coletividade e assim repensar sua função dentro da sociedade. Neste sentido, torna-se bastante clara a interseção com o trabalho realizado junto aos familiares e às babás. É importante fazê-los reconhecer a infância como um tempo em si, com especificidades próprias e notar que a criança é sujeito de seu processo, um ser em constituição e não um ser imperfeito que precisa ser polido. A tarefa passa, também, por ousar resgatar dentro de cada um, sua própria história singular.
A abordagem construtivista fala de uma integração do meio às estruturas anteriores do sujeito, modificando-o em busca de uma auto-organização. Na verdade, ela está expandida para além das fronteiras da escola, pois se baseia em ouvir ao invés de falar, leva em conta a visão de tempo do sujeito, coloca em destaque a dúvida e a fascinação, assim como a busca de respostas ou investigação – e para isto ao adulto em relação se pede que se permita referencial, ajudante nesta descoberta do mundo. Já não parece ser suficiente dar respostas às questões das crianças, mas estar aberto a ouvir suas hipóteses. Surge a questão: como fazê-lo sem exercitar consigo próprio? O profissional que lida diariamente com crianças deve praticar a dúvida, a comunicação. Mostra-se cada vez mais importante o pensar sobre o que o cerca e não apenas limitar-se a “executar tarefa”.
Ainda segundo Rinaldi, a criança é um “construtivista social”, ou seja, ela é vista como um ser em relação a outras crianças, professores, pais, sua própria vivência pessoal e ao meio a seu redor. Estes elementos são de grande importância para a construção da identidade de cada criança.
A aquisição da linguagem e a conseqüente inserção da criança no mundo simbólico traz também a medida da importância do meio que a cerca. Segundo Vygotsky (Kohl de Oliveira, 1993), “os grupos culturais em que as crianças nascem e se desenvolvem funcionam no sentido de produzir adultos que operam psicologicamente de uma maneira particular, de acordo com os modos culturalmente construídos de ordenar o real.” A cultura não é apresentada pelo autor como algo pronto, a que o indivíduo deva ser submetido, mas como um “palco de negociações, em que seus membros estão em contante movimento de recriação e reinterpretação de informações, conceitos e significados”. O indivíduo absorve da cultura a matéria-prima e a transforma, sintetiza, com sua subjetividade envolvida. A perspectiva interacionista nos traz que o sujeito interfere no meio e que o meio interfere no sujeito.
Volto a destacar aqui a importância de que estes mundos simbólicos se encontrem, através da linguagem, em uma comunicação. Na relação produzida em torno da criança, precisa haver troca de conhecimentos, significados compartilhados. Mas cada sujeito envolvido tem o direito de dar seu “sentido”, de acordo com suas vivências afetivas. Segundo Carlina Rinaldi (1999),”as crianças não apenas desejam receber, mas também querem oferecer.” Mostra-se necessário colocar, neste ponto, a questão das diferenças.
A dinâmica realizada em um dos momentos iniciais do curso fez alusão às diferenças e semelhanças entre as pessoas de uma mesma coletividade. Éramos todos interessados em um mesmo processo, de aquisição de conhecimentos. E percebemos como, em meio a algumas semelhanças mais fáceis de identificar, havia diferenças que nos fizeram circular por outros grupos. O movimento enriqueceu-se na diferença. É o que tenho buscado, em meio a algumas orientações comuns aos grupos de interesses, marcar como fundamental para a criança: a multiplicidade de experiências vividas por cada um dos adultos em relação, que faz com que enriqueça sua visão de mundo.
Tem sido importante, ainda, destacar a necessidade de desmistificar a infância, desfazer sua imagem romantizada. Em um mundo adultocêntrico, vê-se a criança como fofinha, boa, encantadora e pura e não se permite sequer admitir que expresse sentimentos negativos, o que torna muito mais difícil sua elaboração. Segundo Benjamin (1984), o ser humano de pouca idade constrói seu próprio universo, capaz de incluir lances de pureza e ingenuidade, sem eliminar todavia a agressividade, a resistência, a perversidade, o humor, a vontade de domínio e o mando. A criança exige do adulto uma representação clara e compreensível, mas não “infantil”, muito menos o que o adulto concebe como tal.
Passeando pela obra de Vygotsky, pode ser traçado também um paralelo com o trabalho realizado junto aos familiares e às babás. Vimos que, para a criança, não só o aprendizado se dá através do que ela consegue conquistar por conta própria, dentro de um nível de desenvolvimento real, mas como também é necessário levar em conta o que ela pode alcançar com a ajuda de outrem, ou seja, estando a tarefa dentro de um nível de desenvolvimento potencial. Este outro, adulto, precisaria estar apto a colocar à mão da criança materiais e situações que possam dar-lhe a chance de desenvolver uma aptidão, a partir de um modelo. O desafio para o adulto é estar presente, disponível, sem no entanto dirigir a prática. O processo de construção social e de si mesmo é feito pela criança sob a observação atenta do adulto, que se beneficiaria em estar aberto a aprender com ela neste caminho. É preciso ainda que o modelo esteja adequado a uma possibilidade da criança em realizar aquele feito. Daí a importância do adulto treinar um olhar cuidadosamente relativizado, estar aberto a conhecer aquela criança, naquela fase específica, naquele dado contexto. Padronizando-a em fases, numa perspectiva desenvolvimentista pura, cria-se não mais uma possibilidade, mas uma expectativa, o que em nada favoreceria seus avanços.
Vista pelo ângulo da proposição de Vygotsky, a capacitação de babás deve levar em conta o interesse pelo assunto e os conhecimentos prévios de cada aprendiz, as possibilidades de apreensão de cada uma - e levar adiante o acúmulo de interesse pelo aprendizado. Quanto mais se aprende, mais se aumenta a vontade de aprender e mais estendida se torna a zona de desenvolvimento proximal. No trabalho realizado com estas profissionais, alguns grupos mantêm o interesse alargados a tal ponto que continuam a se envolver em estudos em grupos, até que possam, num futuro próximo, buscar e compreender as informações por conta própria. “O aprendizado desperta vários processos internos de desenvolvimento, que são capazes de operar somente quando a criança interage com pessoas de seu ambiente e quando em cooperação com seus companheiros. Uma vez internalizados, estes processos tornam-se parte das aquisições do desenvolvimento independente da criança.” ( Vygotsky,L.,1986) Assim é feito com as babás, para que assim seja feito com as crianças...
Outra contribuição Vygotskyana para a prática com pais e babás é a importância de se verificar, dependendo de cada grupo, a intensidade e a qualidade da mediação e da interferência do “coordenador” para o alavancar de conteúdos. A direção pode ser dada, mas novos rumos devem ser possíveis, pois há motivação e desejo dos sujeitos envolvidos. Assim, surge mais uma questão: como trabalhar “conteúdo dado” e conteúdo prévio do sujeito da aprendizagem? Nesta prática, os pais querem que as babás de seus filhos aprendam conteúdos, mas percebo que o caminho da aprendizagem passa necessariamente pelo saber e pela escuta da babá. O desafio imposto, neste caso, é dar visibilidade a este processo.
Percebo como é fundamental ajudar os pais e demais profissionais que os auxiliam a descobrir onde estão as crianças que foram nos adultos que se tornaram. Relembrar alguns sentimentos de infância. Treinar um outro olhar e usar referências próprias à criança e não descartar o que lhe for importante. Desconstruir a visão de um ser frágil, ingênuo e puro a ser “cuidado” e “paparicado” (Àriés, 1981).
No treinamento de babás, uma das questões freqüentemente trazidas pelas famílias é a diversidade cultural. Os pais desejam que seus filhos estejam em contato com pessoas que cuidem deles como eles próprios o fariam, que digam o que diriam. Seu olhar está sempre em busca de igualdade, padronização. Partem do princípio que só pode existir para seu filho um padrão cultural - e encontram-se em um impasse - como mostrar às babás o mundo daquela criança? Neste sentido, o trabalho têm sido o de buscar, de ambas as partes, a relativização do olhar, o reconhecimento de seus preconceitos e instrumentalizá-los para dar conta da pluralidade que vai surgindo com o desenvolvimento da criança. Assim, integrar a babá à família não passa por padronizar crenças, linguagem. A heterogeneidade enriquece as experiências do grupo social. A nossa unidade é, justamente, a nossa multiplicidade (Kramer,1995). Como levar adiante a tarefa de formar sem se colocar como pessoa? Como descobrir o mundo do outro - e estar aberto a isto - impedido de olhar para dentro de si? A diferenciação feita entre os conceitos de adaptação e inserção foram fundamentais para esta compreensão.
No cotidiano junto à família em casa, assim como na escola, as condições de trabalho podem favorecer ou desfavorecer a sua prática, mas é preciso descobrir como se colocar o mais coerente possível com o que se acredita. Segundo Maria Isabel Leite (1996), “se somos diferentes em nossa condição de sujeito histórico, por que acreditar que há um caminho igual e ideal a ser seguido por todos? E a quem caberia traçar este caminho? Há quem se acredite superior ou melhor e, portanto, credenciado a determinar o que e como os outros devem agir. Entretanto, se nos submetermos desta forma, estaremos abrindo mão de nossa condição humana...”
Esta integração precisa ser conquistada abrindo mão da padronização. No dia-a-dia com crianças, é preciso respeitar ritmos, interesses, diferenças. É muito comum perceber comparações entre crianças de mesma idade, sexo ou família - e buscar uma facilitação da compreensão do desenvolvimento infantil aprisionando-o em fases. É necessário que os adultos percebam como o desenvolvimento é um movimento dinâmico, não estático e progressivo. A criança faz avanços e retrocessos, de acordo com o que a experiência lhe exige. A perspectiva da psicologia do desenvolvimento faz com que visemos o vir-a-ser de uma criança e é necessário ver também o que ela já é - esta noção de desenvolvimento se transporta para todo trabalho de capacitação: o sujeito da aprendizagem já detém um saber. Todo currículo deve levar em conta o que o sujeito vive hoje, sua realidade. É preciso muito cuidado para não nos aprisionarmos em nossos conceitos e não conseguirmos ver sob a perspectiva do outro estes dados conceitos.
Esta questão é presente também nas relações entre pais e babás. Padronizam-se os grupos, dificultando o conhecimento da singularidade de cada um. Assim, rótulos e preconceitos afastam a possibilidade de uma escuta isenta. Da dificuldade, surge o determinismo: ”Não tem jeito”. Do determinismo, a desistência da mudança. Há muito trabalho a ser feito neste sentido.
A babá - adulta, foi, muitas vezes, uma criança sem voz, sem oportunidade de desenvolver sua ludicidade. Os relatos mostram como a infância fora encurtada. Como poderia ela, hoje, cumprir com gosto a tarefa de zelar por uma infância sem ter a chance, renovada, de resgatar sua própria infância e revivê-la no dia-a-dia com a criança? Como pode descobrir o prazer em brincar se não pôde perceber a falta que isto lhe fez?
Os pais - adultos, foram, muitas vezes, crianças ensinadas a seguir padrões exigentes de comportamento, sem-querer, submetidos a uma severa submissão. Os relatos mostram como surge a necessidade de abandonar o modelo. Como fazê-lo sem ter a chance de elaborar o passado? Como não repetir - até mesmo inconscientemente - o modelo autoritário com os filhos e até mesmo com as babás?
O entrelaçamento de diferentes vozes em torno de um mesmo objetivo (neste caso, o bem cuidar de uma criança) é a grande contribuição do Projeto às famílias que atendemos. É interessante notar, finalmente, como este movimento de “ajuste”, esta aproximação é algo que já está existente nos pares que buscam esta ajuda - aqueles que não vêem chance de interseção entre os diferentes mundos, sequer conseguem compreender a dimensão desta proposta.

Fernanda Roche

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