Família em primeiro lugar
Há vinte anos presenciei uma cena que modificou radicalmente a minha vida. Foi num almoço com um empresário respeitado e bem mais velho que eu. Ele era um dos poucos engajados no social, embora fosse pessoalmente um workaholic.
O encontro foi na empresa, ele não tinha tempo para almoçar com a família em casa e nem com os amigos num restaurante. Os amigos tinham de ir até ele.
Seus olhos estavam estranhos, achei até que vi uma lágrima no olho esquerdo. Bobagem minha, pensei, homens não choram, especialmente na frente dos outros.
Mas durante a sobremesa ele começou a chorar copiosamente. Fiquei imaginando o que eu poderia ter dito de errado. Supus que ele tivesse se lembrado dos impostos pagos no dia, impostos que ele sabia nunca seriam usados no social.
“Minha filha vai se casar amanhã”, disse sem jeito, “e só agora a ficha caiu. Eu fui um tremendo workaholic e agora percebo que mal a conheci. Conheço tudo sobre o meu negócio, mal conheço minha própria filha. Dediquei todo meu tempo a minha empresa e me esqueci de me dedicar à família.”
Voltei pra casa arrasado. Por meses eu me lembrava dessa cena patética e sonhava com ela. Prometi a mim mesmo e a minha esposa que nunca aceitaria seguir uma carreira assim.
Colocar a família em primeiro lugar não é uma proposição ética tão óbvia, trivial nem tão aceita por aí. Basta entrar na internet e você encontrará milhares de artigos que lhe dirão para colocar em primeiro lugar os outros – a sociedade, os amigos, o dever, o trabalho, o cliente, raramente a família.
Normalmente, a grande discussão é como conciliar o conflito entre trabalho e família, e a saída salomônica é afirmar que dá para fazer ambos. Será?
O cinema americano vive mostrando o clichê do executivo atarefado que não consegue chegar a tempo à peça de teatro da filha ou ao campeonato mirim de seu filho. Ele se atrasou justamente porque tentou “conciliar” trabalho e família. Só que surgiu um imprevisto de última hora, e a cena termina com o pai contando uma mentira ou dando um desculpa esfarrapada.
Se tivesse colocado a família em primeiro lugar, esse executivo teria chegado a tempo, teria dado a ela o suporte psicológico necessário nos momentos de angústia que antecedem um teatro ou um jogo.
A questão é justamente essa. Se você, como eu e a grande maioria das pessoas, tem de “conciliar” família com amigos, trabalho, carreira ou política, é imprescindível determinar, muito antes das inevitáveis crises, quem você prioriza e coloca em primeiro lugar. Você não terá de tomar difíceis decisões de lealdade na última hora, pois a opção já terá sido previamente discutida e emocionalmente internalizada.
Na época pensava deixar de ser professora da USP, apesar do ambiente tranqüilo e dos três meses de férias que a carreira proporcionava. Mas aquele almoço me fez ficar, para desespero de meus alunos.
Colocar minha família em primeiro lugar tem um custo com o qual nem todos podem arcar. Implica menos em dinheiro, fama e projeção social. Muitos de seus amigos poderão ficar ricos, mais famosos que você e um dia olha-lo com desdém. Nessas horas, o consolo é lembrar um velho ditado que define bem por que priorizar a família vale a pena: “Nenhum sucesso na vida compensa um fracasso no lar”.
Qual o verdadeiro “sucesso” de ter um filho drogado por falta de atenção, carinho e tempo para ouvi-lo no dia-a-dia? De que adianta fazer uma fortuna para ter de dividi-la pela metade num ruinoso divórcio e pagar pensão à ex-esposa para o resto da vida? De que adianta ser um executivo bem sucedido e depois chorar durante a sobremesa porque não conheceu sequer a própria filha?
Os leitores que ficaram indignados porque não tiro férias podem ficar tranqüilos. Eu só não tiro férias aqui da Veja, como a maioria dos colunistas.
Matéria da Revista Veja de 20 de Fevereiro de 2002, escrita por Stephen Kanitz
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