Joyce McDougall, um dos maiores expoentes da psicanálise mundial, esteve em Belo Horizonte, onde falou para profissionais e concedeu entrevista ao Jornal Estado de Minas. Leia a entrevista.
Autora de cinco livros traduzidos em mais de dez línguas – entre elas o japonês e o hebreu –, Joyce McDougall pode ser considerada um dos maiores expoentes da psicanálise mundial. O reconhecimento de sua contribuição para desvendar os mistérios do universo psíquico ultrapassa fronteiras.
Na Índia, por exemplo, o próprio Dalai Lama, interessado em entender a importância de Freud na cultura ocidental, convidou-a para fazer uma conferência. Na semana passada, ela esteve em Belo Horizonte, onde falou para profissionais da área sobre As origens erógenas do ato criativo. O tema é abordado em seu novo livro, As múltiplas faces de Eros, traduzido para o português.
Joyce nasceu em Dunedin, na Nova Zelândia, e seu interesse pela psicanálise surgiu ainda na adolescência, quando teve contato com a obra Psicopatologia de vida cotidiana, de Freud. A partir desse encontro, decidiu estudar psicologia em vez de medicina, como era o desejo de sua família. Em entrevista ao Jornal O Estado de Minas, ela fala sobre psicanálise e contemporaneidade.
ESTADO DE MINAS – De acordo com a sua experiência, haveria uma diferença entre a demanda de análise na atualidade e nos anos 50?
Joyce McDougall – Quando penso nos anos 50, todos os que procuravam análise eram submetidos à chamada “análise clássica”, quatro vezes por semana. Esse aspecto mudou radicalmente. As necessidades talvez não tenham mudado muito, mas o que as pessoas fazem face ao sofrimento mental, possivelmente mudou bastante. Pelo menos é o que vem acontecendo na França e em muitos países onde tenho sido convidada para fazer conferências. Em todos esses lugares, ouço analistas dizerem que são poucas as demandas para uma análise com três ou quatro sessões por semana. No máximo, as pessoas querem vir uma vez por semana; às vezes, uma vez a cada 15 dias, ou até menos que isso. Uma das muitas razões para tal desinteresse deve-se ao fato de existirem outras terapias paralelas. Há também o fato de se ter acesso a livros que tratam da psiqué humana. Freqüentemente, as pessoas acabam resolvendo seus problemas por si sós ou, no máximo, procurando alguém para falar uma vez por semana ou uma vez por mês. Essa é uma grande diferença.
Atualmente, com a globalização, aceleração do tempo e necessidade de respostas mais rápidas, diversas terapias alternativas vêm ganhando espaço e conquistando a credibilidade de um número cada vez maior de pessoas. Como a psicanálise, que historicamente sempre se apresentou como um tratamento longo e caro, acompanha essas mudanças?
JMC – Inicialmente, devo dizer que o problema da psicanálise ser um tratamento longo e caro não é algo que se possa generalizar. Na França, ela não é tão cara assim e, em muitos locais – institutos de formação e alguns hospitais, por exemplo – o custo do tratamento é totalmente garantido pelo governo. Além disso, muitos psiquiatras e psicanalistas podem assinar os formulários de reembolso do serviço social, o que faz com que o atendimento psicanalítico, independentemente do seu tempo de duração, seja acessível a quem o deseje. No que diz respeito às mudanças contemporâneas, acho que a psicanálise as tem acompanhado na medida em que se observa uma procura por psicoterapia de família, psicodrama e outras formas de ajuda, cujas bases teórico-clínicas continuam sendo a psicanálise. Isso constitui uma interessante mudança de paradigmas. Mesmo assim, certas pessoas, tais como analistas em formação, filósofos, pedagogos ou aqueles que desejam obter um conhecimento mais profundo de si mesmo, ainda procuram a análise clássica. Tudo isso, é claro, depende da demanda do sujeito que procura análise, quão longe ele está disposto a ir em sua viagem analítica.
Qual seria o futuro da psicanálise, tendo em vista todas as mudanças ocorridas nessa área?
JMD – Se a psicanálise deve continuar a ser uma prática importante, então temos que descer de nossa torre de marfim e dialogar com outras ciências, tais como a neuropsiquiatria e a neuropsicologia. Devemos também incrementar nosso interesse na pesquisa psicossomática e no trabalho dos cientistas sociais, por exemplo. Embora a prática clínica certamente vá continuar a se desenvolver e mudar para acompanhar as mudanças sociais, as bases da metapsicologia freudiana serão sempre um instrumento inestimável para a compreensão das paixões e das raízes do sofrimento da espécie humana.
Como a psicanálise pode contribuir para resolver o estresse e o mal-estar característicos do mundo contemporâneo?
JMD – Creio que pode fazê-lo através da terapia de grupo e do psicodrama em segmentos específicos da sociedade, de forma que problemas particulares, como delinqüência, abusos, situações de desigualdade, de estresse e tantos outros possam ser abordados e a angústia, trabalhada. Por outro lado, acho difícil falar sobre a extensão da ajuda que a psicanálise pode dar. Vivemos numa “era das trevas”, com a presença assustadora do terrorismo, de controle, de falta de possibilidades de escolhas. Ao mesmo tempo, isso tem levado muitos profissionais a discutir sobre as conseqüências do terrorismo e, em nível individual, essa questão tem sido tratada nos consultórios e nos trabalhos em grupo.
Com relação à violência, que tem gerado grande assombro nas pessoas e também é um dos elementos causador de estresse, qual poderia ser a contribuição da psicanálise, especialmente levando em consideração argumentos do próprio Freud de que, para ir contra a agressividade e a violência, é preciso incentivar o erotismo e a criatividade?
JMD – Já publiquei vários artigos sobre o tema criatividade. Um deles se chama Violência e criatividade. Nele, procuro mostrar que a violência não é, necessariamente, destrutiva: ela pode ser criativa e construtiva. Talvez a violência se torne destrutiva quando não existe espaço para a criatividade e para o erotismo. O ato sexual é, no fundo, violento. Mas a relação afetiva com o objeto o protege de destruição. Por outro lado, a destrutividade pode tornar-se a única saída para a violência, quando as pessoas, pelas mais diversas razões, sentem-se impedidas de criar e/ou de viver uma vida erótica satisfatória.
Em sua última palestra em Belo Horizonte, a senhora falou sobre as origens erógenas do ato criativo. Qual a importância do erotismo e da criatividade na vida profissional e pessoal dos indivíduos?
JMD – Inicialmente, é necessário dizer que depende da pessoa. A coisa mais interessante a respeito do ser humano é a sua singularidade. Para algumas pessoas, o ato criativo requer uma grande violência, mas elas conseguem conciliar os dois fatores e serem criativas. Para outras, a relação criação/destruição pode ser tão forte a ponto de haver um bloqueio da criatividade, pois criar significa destruir. Como Freud já disse, a origem de todo ato criativo deve ser procurada na vida erógena infantil. O fundo pulsional de toda atividade humana está inelutavelmente infiltrado de elementos pré genitais, assim como alguns aspectos da sexualidade arcaica. Os desejos bissexuais da criança, que todos nós guardamos, são fatores igualmente importantes no ato criativo. Da mesma forma, a relação que o artista estabelece com material através do qual expressa sua criação – seja na pintura, na escultura, na música, na literatura – é um fator de extrema importância, tanto na criação quanto em sua inibição. Outro fator decisivo no ato criativo é a relação que o artista estabelece com o seu público. De certa forma, o artista está, por meio de seu trabalho criativo, impondo ao público sua visão de mundo. Assim, o que ele projeta no público – aceitar ou rejeitar a sua criação – tem uma participação importante na sua capacidade de criar. Nos casos clínicos que apresentei para ilustrar a minha palestra, mostrei como a inibição da criatividade estava diretamente relacionada à vida erótico/afetiva do sujeito e com suas relações arcaicas com o mundo.
* Tradução de Paulo Roberto Ceccarelli, psicólogo e psicanalista - www.ceccarelli.com.br
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