quarta-feira, 9 de setembro de 2009

LIVROS DESDE O BERÇO
Eixo da Transmissão Cultural *

O desenvolvimento da alta tecnologia dominou esse final de milênio e penetrou nos lares e na vida da criança de uma maneira muito precoce. Veio a televisão, vieram os computadores, os jogos de vídeo-games e nesse mundo informatizado, o tempo do “Era uma vez, um rei e uma rainha, num país distante...” se perdeu.
Assim, há muito e muito tempo, num país distante, do outro lado do Atlântico, na cidade luz, Paris... três psicanalistas, René DIATKINE, Tony LAINÉ e Marie BONNAFÉ atendiam adolescentes que apresentavam diversas dificuldades particularmente escolares, com um histórico de repetência significativo, muitos com fobia escolar e já no limite da marginalidade. Esses psicanalistas começaram a se questionar e constataram que, o ponto em comum entre os adolescentes era a ausência total do livro em suas vidas. Alarmados com esse quadro e o número crescente de crianças que não se alfabetizavam no final do primeiro ano, esses profissionais se perguntavam sobre um possível trabalho de prevenção.
A resposta a esse questionamento veio em 1979, num colóquio realizado em Paris, sobre as dificuldades da linguagem escrita. Emília FERREIRO apresentou sua pesquisa comparativa, sobre a curiosidade da criança diante das histórias e da escrita. Constatou que toda criança, independente de sua classe social, se interessa espontaneamente pelos livros. No entanto, a partir dos quatro anos, o meio exerce influência significativa, o que diferencia os grupos.
As conclusões de Emilia FERREIRO encorajaram René DIATKINE e seus colaboradores, a criarem, em 1980, a Associação “Actions Culturelles contre les Exclusions et les Ségrégations – A.C.C.E.S.“, cujo objetivo é desenvolver uma atividade cultural precoce e justificou intervenções que constituem um aporte, tanto para as crianças de meios desfavorecidos quanto para as outras. Um dos objetivos da ACCES é a prevenção da repetência escolar, colocando a criança, o mais cedo possível, em contato com os livros e a linguagem da narrativa. Tem como hipótese, que a criança que vivenciou, desde os primeiros meses de vida, um tempo lúdico com as histórias, conservará o interesse pelas mesmas e estará em melhores condições para as aprendizagens da escrita e da leitura. Esta hipótese foi confirmada ao longo dos anos de pesquisa.
Assim sendo, desde 1983, enquanto colaboradora da Associação ACCES, desenvolvi um trabalho que consiste em apresentar às crianças, desde bebês, livros de literatura, comportando ilustrações e textos de qualidade estética, nos mais diversos lugares do cotidiano.
Para várias crianças, a escola é o único lugar onde elas podem ter um contato com os livros, que muitas vezes estão associados a uma exigência escolar, podendo tornar-se objeto de avaliações. A vertente da aprendizagem é importante, mas para desenvolvermos o gosto pelos textos literários, é fundamental criar-se ações culturais livres e prazerosas, de leitura de histórias, contos e poesias, nos momentos transitórios ou ociosos, para conseguirmos quebrar este vínculo. Este espaço lúdico pode e deve ser desenvolvido também nas escolas. Esta familiarização com a escrita nos locais de coletividade, ameniza os efeitos da ausência dos livros nas famílias.
O fracasso escolar e a marginalização social resultantes não são fatalidades do destino ou anomalias genéticas, mas sim um produto de carências tanto quantitativa quanto qualitativa das expressões da linguagem que cercam as crianças durante seus primeiros anos de vida.
A linguagem Factual, da ação, do cotidiano, acompanha os fatos e gestos da vida, é um comentário contínuo sem começo nem fim, que necessita de um contexto para ser compreendida. A criança aprende primeiro a linguagem da ação e aprende a falar através desta linguagem. Ao contrário, a linguagem da narrativa, que é estruturada e que relata os eventos à distância, introduz a noção de tempo, com um começo, um meio e um fim. O começo fazendo esperar o fim e entre os dois, os elementos da história se desenvolvem num ritmo alternado.
Para que a criança esteja pronta para aprender a ler e a escrever, precisa ter brincado durante muitos anos com a linguagem da narrativa. O jogo com essas duas formas de linguagem organiza a criança e vai constituir a aquisição da linguagem, pois a atividade lingüística é uma atividade lúdica. A narrativa permite o acesso à leitura e ao imaginário As histórias mobilizam as emoções, a imaginação e a fantasia e permitem à criança pensar na sua própria realidade e achar soluções para transformá-la.
No campo da cultura, tanto para os bebês quanto para os adultos, o livro é o eixo , o pivô da transmissão cultural. O uso da escrita é um suporte essencial para essa transmissão e os livros são os melhores mediadores, por sua diversidade e a facilidade de suas difusões.
A partir dos seis meses, o bebê é capaz de reconhecer as representações dos objetos de seu universo e tenta pegá-las. Aos poucos compreende que a imagem representa o objeto, que tem as mesmas características, mas não é o objeto. Quando a criança faz esta analogia, passa a acariciar a imagem, de um gato por exemplo, e não mais a tentar pegá-la. O livro se torna, então, um objeto de posse.
Toda criança num determinado momento exige a mesma história, durante um certo tempo. Graças à fixação do texto escrito, ela pode reencontrar as histórias, lidas de maneira idêntica, cada vez que necessário. O livro proporciona, então à criança, uma maior liberdade de jogo: necessidade do idêntico e a possibilidade de brincar com as imagens: bater no urso que faz medo, esconder o lobo..., o que facilita o trabalho de controle das emoções, das angústias de separação, das fobias infantis, inerentes ao seu desenvolvimento psicológico.
Sensibilizar os pais e adultos que se ocupam da criança é muito importante. A melhor maneira é que sejam testemunhas do real prazer e das reações da criança em relação aos livros: na sala de espera de um posto de Proteção Materno Infantil, a mãe de Sébastian, quinze meses, surpresa pelo fato de seu filho já estar há dez minutos vendo um livro, se exclama, quando o menino se levanta, repentinamente, no meio da história: “Ah! estava bom demais. Ele que não fica quieto um instante...”. Sua surpresa foi muito maior, quando Sébastian volta com um avião e coloca o objeto sobre a imagem de um avião. “Puxa, você viu? ele entendeu tudo...”. Essa mãe, como muitas outras, acabava de descobrir aptidões de seu filho que até então ela desconhecia. Tais testemunhos são fundamentais, tanto na interação mãe/criança, quanto no vínculo dos outros adultos, como professores, que passam a ver potenciais das crianças, ainda não observados, o que acarreta uma mudança importante na relação.
Quanto mais cedo a criança entrar no mundo da literatura, mais chances terá de se tornar um futuro leitor. Mas é sempre possível reconstituir experiências positivas em outros momentos da vida.
Uma experiência surpreendente com pré-adolescentes, num conjunto de habitação popular, nos trouxe a confirmação do quanto esse tempo das histórias durante a infância é essencial.
Nosso objetivo era propor as animações-livros para todas as crianças, residentes deste conjunto, em idade pré-escolar e as que estavam em fase de alfabetização. Ao invés desses pequenos, encontrei-me com meninos e meninas de onze a treze anos, que vieram espontaneamente. Tratava-se de um grupo violento, alguns com passagens no comissariado de policia, a maioria com grandes dificuldades escolares. Essas crianças, cujo único meio de comunicação era a agressividade, física ou verbal, num movimento regressivo, mostraram-se ávidos pelas histórias infantis, como se esses primeiros contatos com os livros, as imagens e a narrativa, fossem uma etapa obrigatória no seu desenvolvimento intelectual e afetivo, etapa omitida em suas vidas. Somente depois de dois anos foram capazes de investir os livros, digamos, apropriados à sua faixa etária.
A mudança que ocorreu nessa população tão desprovida no plano cultural foi significativa, tanto na agressividade, que diminuiu consideravelmente, quanto nas esferas afetivas e intelectuais. Muitos se inscreveram na biblioteca do bairro e traziam para o grupo os livros escolhidos.
Podemos constatar que mesmo em condições difíceis, é possível realizar uma proposta de transmissão cultural que permita o livre aflorar da criatividade e a elaboração, por parte da criança, de suas dificuldades e conflitos.
Cada vez mais a desigualdade é insuportável e prevenir as futuras exclusões e segregações, as quais as crianças possam vir a sofrer mais tarde como adultos iletrados, é dever de todos...
Este trabalho tem também objetivos e efeitos sobre a família e o meio sociocultural mais amplo em que a criança se insere e oferece a todos a mesma possibilidade de acesso às diferentes formas de linguagem e as elaborações psíquicas que esta ação permite, englobando as áreas educativas, sociais e clínicas.
Como disse Otto Rank: “A literatura é o sonho acordado das civilizações. Assim como não pode haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura”.
Sejamos todos Cheherazade. Contando belas histórias às nossas crianças, fazendo delas admiradoras incondicionais da literatura e dos livros, e de geração em geração de Cheherazade, bem além de mil e uma noites, os bebês de hoje, futuros leitores, terão garantido um dos direitos básicos de todo ser humano, o acesso a cultura.

Claudia Maria de Lima Brandão
Psicóloga Clínica, Fonoaudióloga, Presidente da Associação Cultural Quero Ler – RJ

* Artigo no Jornal “Poiésis, Literatura, Pensamento & Arte” – Ano VIII N°77 –
julho 2002

Fonoaudióloga – Instituto Henry Dunant – RJ
¨ Presidente da Associação Cultural Quero Ler RJ
¨ Trabalhou de 1983 a 1999 na Associação “ACCES” – Paris – na Pesquisa sobre o Contato Precoce da Criança com o Livro
¨ Trabalhou como Psicóloga Clínica no Centro de Psiquiatria “CENTRE ALFRED BINET”, onde implantou um Atelier de leitura de histórias e contos (Paris 1985 à 1999)
¨ Trabalhou no Projeto do Ministério da Saúde, em parceria com a Fundação ABRINQ, na implantação da “Biblioteca Viva em Hospitais”, na formação e supervisão das equipes do Instituto Fernandes Figueira, Hospital Municipal Jesus e Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira – IPPMG, no Rio de Janeiro – 2001
Cursos e palestras junto a Casa da Leitura e ao PROLER – desde 2000

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