Heranças de família
Recentemente, li um artigo sobre o caráter descartável de quase tudo na sociedade que enfatiza o consumo. Um trecho me chamou a atenção, porque o autor ressaltou uma perda significativa. Cada vez menos as pessoas deixam de herança aos filhos algum objeto de uso doméstico. Isso ocorre porque quase todos têm pouca durabilidade e também porque a moda é muito transitória.
Ele usou exemplos interessantes: até há pouco tempo, quase todas as famílias tinham algum móvel antigo que pertencera a algum antepassado -ou uma batedeira de bolo, uma máquina manual de moer carne etc. Lembrei-me de que tenho, em minha sala, um móvel antigo comprado por meu pai antes de eu nascer. Toda vez que passo por ele, lembro-me com carinho de meu pai, da minha infância e de seus ensinamentos. Sempre me emociono.
Mais do que decorar a casa, a função desses objetos é a de corporificar a história da família, lembrar às pessoas as suas origens. Pelo visto, as novas gerações não terão essa sorte.
Tal pensamento me fez associar a um outro: assim como os objetos de uso geral têm se tornado descartáveis, as tradições familiares têm se perdido. Corremos o risco de nos tornarmos uma geração de famílias anônimas: sem identidade própria, sem tradições nem costumes.
Desse modo, tanto faz ter este ou aquele sobrenome.
Muitos pais têm desistido de transmitir aos filhos o que receberam de seus pais no convívio familiar: certos costumes de reuniões com parentes, de estilo de comemorar datas e presentear, de maneiras de encarar as dificuldades da vida e, principalmente, o valor de algumas atitudes. Tudo isso em nome da mudança dos tempos.
Um fato é verdadeiro: o mundo hoje é diferente do mundo em que esses pais foram criados, por isso parece que nada do que aprenderam com seus pais serve para a educação de seus filhos. Mas essa idéia tem um problema: o de que a história pode ser ignorada.
Isso significa, como um amigo gosta de dizer, que os pais precisam, a cada dia, na relação com os filhos, "inventar a roda, começar do zero". Isso torna tudo mais difícil, pois exige que os novos pais façam várias escolhas diariamente, e escolher é um processo complexo.
Tomemos um exemplo banal: a vida escolar dos filhos. Recebo, com regularidade, dúvidas dos pais sobre como proceder: acompanhar ou não as lições de casa, estudar ou não com os filhos, comparecer ou não às reuniões da escola, impor a leitura de tantos livros por mês ou não etc. O mais interessante é que, em quase todas as correspondências, eles dizem que, quando freqüentaram a escola, não tiveram esse tipo de ajuda dos pais.
A tradição de muitas famílias de delegar a responsabilidade escolar aos filhos tem se perdido, portanto. Por quê? Porque o êxito escolar hoje em dia tem sido muito mais valorizado.
Temos feito de tudo para dar aos filhos o que nossos pais não puderam nos dar, mas, ao mesmo tempo, temos negado ofertar a eles coisas importantes que herdamos. Talvez seja possível encontrar um equilíbrio nessa relação.
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