quarta-feira, 9 de setembro de 2009

“Da ama à babá - passeando pela renovação da escola: trajetória do papel da família na Educação Infantil.”

Este estudo tem como finalidade fazer um esboço inicial do panorama histórico-cultural da infância, a partir da Idade Média, destacando o papel da família e da escola e, caminhando através dos tempos em direção à modernidade, verificar o desembarque deste conjunto de relações um um dado grupo social: famílias de classes sociais economicamente favorecidas no Brasil.
Como coordenadora do Projeto CRIANÇA EM FOCO, que tem sua proposta baseada em orientação familiar, percebo diversas questões que circulam nas relações entre pais, avós, escola e babás. Nesta tentativa de aproximar minha prática dos conhecimentos adquiridos ao longo do primeiro semestre deste curso, me parece necessária uma breve investigação do conceito de infância nos diversos contextos socioculturais.
Diversos autores nos mostram como, historicamente, a criança era vista com muito pouca importância, até mesmo devido ao fato de a grande maioria não sobreviver às doenças nos primeiros anos de vida. A taxa de mortalidade infantil era tão elevada, que não justificava a visão da infância como uma fase em si, mas como uma época de passagem para a vida adulta, um vir-a-ser. As crianças de classes sociais mais abastadas eram postas à margem da família, entregues aos cuidados de amas e apenas por volta dos sete anos era apressada, finalmente, sua entrada na vida adulta. As famílias não possuíam referencial sobre o que fazer com seus bebês e, de certa forma, mantinham-se distantes até pela sobrevivência incerta, como um mecanismo de defesa. Quando cresciam, eram enviados a famílias distantes para que aprendessem regras de convivência social. A família, portanto, não possuía uma integração.
Com a saída dos homens para as guerras por pedaços de terra, as mulheres se viram frente ao desafio de gerir suas próprias casas, o que demandou a necessidade da contratação de serviçais femininas para que ajudassem no trabalho doméstico. Surgia, então, uma nova necessidade: dar conta dos filhos destas serviçais, que invariavelmente eram deixados na “roda” ou em instituições com caráter assistencialista. Eram os primórdios da creche na Europa. As primeiras iniciativas de assistência à infância, portanto, foram dirigidas a um público menos favorecido, e na maioria das vezes ligadas à Igreja.
Na Idade Moderna, com a Revolução Industrial e a modificação das organizações familiares nos burgos, unidas ao movimento higienista do séc. XIX e o início do controle de mortalidade infantil feito através das primeiras experiências de vacinação, começou a surgir a necessidade de pensar o bem-estar das crianças. Com o passar do tempo, surgem novas iniciativas que levavam em conta a infãncia como um tempo em si, e as creches começaram a buscar um caráter pedagógico-assistencialista. Na Alemanha, Froebel inaugura o primeiro Jardim de Infância (Kindergarten).
Das mães, que outrora deixavam seus filhos aos cuidados de amas, passou a ser exigido uma maior presença ao lado dos filhos. Da Medicina, exigiu-se um olhar preventivo. Da Educação, finalmente, exigiu-se que se apropriasse de estratégias para o desenvolvimento de espaços próprios para o desabrochar de potencialidades…o conceito de “cuidar” vai se modificando a partir das organizações familiares, como uma extensão da casa...o cenário que se delineou foi propício ao avanço de todas as áreas afins, tendo em vista um objetivo em comum: dar conta de uma nova categoria, a infância. Segundo Daise Nunes (2000), com a modernidade, a infância passou a ser reconhecida como tempo diferenciado. E a família passou a ser uma unidade, em que se começaria a levar em consideração a interação entre seus integrantes.
Na Era Moderna, com o advento do Capital, as condições para a escolarização começaram a ser mais claras e a escola, com um modelo burguês, passa a ter um papel difusor, de transmissão de valores morais, éticos, de formação de adultos saudáveis e produtivos, com o objetivo de ajuste, de manutenção da estabilidade familiar. Aparece também um caráter individualista nas relações humanas.
Com as duas grandes guerras mundiais, deu-se uma nova reestruturação na organização familiar. Com a saída dos homens da cena familiar, deu-se a entrada da mulher no mercado de trabalho e novas necessidades surgiram na área escolar. A diminuição do número de filhos e o aumento das famílias monoparentais também trouxeram sua contribuição. Agora não mais havendo a figura paterna presente e a materna precisando ter com quem deixar seus filhos em tempo maior, a escola passa a pedir licença à família a se imcumbir da educação das crianças, baseadas em propostas cientificamente estudadas e em busca de avanços progressivos, de cunho pedagógico e psicológico e marcadas também pelos campos da sociologia e antropologia.
Vimos também, através de Fúlvia Rosenberg (1992), como em diversos países a Educação Infantil passa a fazer parte de um mercado de trabalho e de consumo, regido pela competição econômica, o que gerou uma ampla indústria marcada pela inovação de programas, equipamentos e materiais e acaba por trazer uma ajuda, também, para o processo de socialização de jovens consumidores.
Aqui parece necessário um recorte sobre a situação encontrada no Brasil. Segundo Bonamino e Leite Filho (1995), “a economia colonial fundada no latifúndio e na mão-de-obra escrava propiciou o aparecimento do poder representado pela autoridade sem limite do dono de terras e pela família patriarcal que favoreceu a importação de formas de pensamento e de idéias dominantes na cultura medieval européia.” Tendo sido adotado um modelo econômico e sociocultural advindo da colonização, baseado no escravismo, verificou-se, com certo atraso, um desenvolvimento das primeiras iniciativas em Educação Infantil. Com a abolição da escravatura, as “novas” relações de trabalho determinavam a necessidade de assistência para os filhos das trabalhadoras domésticas. Com as concepções européias de atendimento à criança e as profundas transformações ocorridas com a Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da República, inicia-se a construção de uma sociedade capitalista urbano-industrial, trazendo a entrada, aos poucos, de propostas inspiradas na creche francesa para crianças pobres (assistencial) e de outro, de propostas de inspiração alemã, os jardins de infância para crianças das camadas mais ricas da população.
No período denominado República Velha (1889-1930), o poder das oligarquias regionais e enfraquecimento do poder central do Estado fez com que a estrutura política, econômica, social e cultural entrasse em crise, culminando com a Revolução de 1930. Houve então uma urgência da civilização e a valorização dos médicos, que, “juntamente com os engenheiros e os educadores, passaram a formar um grupo de intelectuais cientificistas, uma geração com idéias liberais e vontade de transformar a estrutura sócio-politica-econômica.” (Leite Filho, 1995).
Ainda segundo os autores, a criação do jardim de infância em relação a ideais religiosos gerou, de um lado, advindo do catolicismo, o modelo educacional tradicional e, de outro, advindo do protestantismo, o movimento que culminaria no escolanovismo. Os anos 70 foram marcados pelo debate sobre a democratização pré-escolar e sobre a expansão do ensino que já vinha sendo desenvolvida desde os anos 30, mas com grande enfoque na relação quantidade x qualidade. Nos últimos 25 anos, segundo Aristeo Leite Filho, o atendimento à criança de 0 a 6 anos triplicou e o período seguinte aos anos 70 caracterizou-se, efetivamente, como o início da Educação Infantil no Brasil, o que, no entanto, omite os primórdios da pré-escola brasileira, já citados.
A “pós-modernidade” (Hargreaves, 1995), iniciada nos anos 60 e prolongada até os tempos atuais, se constitui uma situação social em que a vida econômica, política, organizacional e pessoal se organizam em torno de princípios muito diferentes dos da modernidade. Os avanços nas telecomunicações e a rapidez e abrangência das informações tornam necessárias outras formas de pensar, de agir e viver. O declínio do sistema fabril, o avanço do setor de serviços, a importância da informação e das imagens, em detrimento dos produtos e coisas, a flexibilidade, agilidade e agilidade são características imprescindíveis na nova ordem mundial. A necessidade de dar respostas rápidas ao mercado exige uma descentralização de decisões, menos hierarquização, uma visão globalizada das coisas. Com isto, acontece inevitavelmente uma certa diluição de papéis e de limites.
Trazendo a questão familiar de volta à cena, mostra-se necessário verificar, neste contexto, onde se situam as relações entre a escola renovada e a família, que cada vez mais se coloca “desqualificada” para educar seus filhos. (Cunha, 1996).
A família, devido aos avanços sociais, econômicos e tecnológicos, tem mudado também seus papéis, suas obrigações e sua estrutura tradicionais. Mães e pais têm cada vez mais negociado entre si as tarefas domésticas e responsabilidades em geral. A mulher, imersa no mercado de trabalho não mais apenas por necessidade, mas agora por vontade própria. Os pais se colocam hoje como inábeis para impor limites e educar seus filhos. A escola, assim como outros profissionais de apoio (babás) antes dela, acabam por ser autorizadas a dar conta da educação das crianças.
Segundo Cunha (1996), à medida em que, com a modernidade, a especialização de tarefas projetou o indivíduo para além do restrito espaço do lar, esvaziou-se o valor da família. A educação, a exemplo das funções econômicas, também deixou de ser atribuição da família, como vista no documento Manifesto dos educadores. Além disto, a família foi abalada pela crescente complexidade que tomou conta dos domínios educacionais quando os avanços científicos chegaram nesta área. A educação se constituiu como uma ciência, com seus problemas, sua técnica e seus métodos próprios, tirando-a de vez do alcance das famílias. Com a aceitação da subjetividade envolvida nas dificuldades encontradas pelos educadores com o sucesso escolar de algumas crianças, finalmente apareceu a necessidade de se adotar “estratégias escolares para normalização da família”, o que caracterizou a importância de envolver os pais no processo educacional.
Lareau (1987), estudando as relações família-escola em dois contextos diferentes, comunidades de classe média alta e comunidade de classe trabalhadora, descreve que o envolvimento de pais com a escola pode variar de intensidade, nível e tipo de acordo com as “culturas” da escola e da comunidade a quem ela serve. Parece-me necessário, neste momento, que a escola não se assuma dotada de todo o saber sobre a criança, que ela envolva os pais em seus processos pedagógicos e que, principalmente, não assuma o papel da família neste processo da educação. “É preciso não confundir o papel materno/paterno com o papel docente.” (Carvalho, 2000). Tanto os profissionais quanto os pais só conseguirão alcançar seus objetivos se fizerem seu papel assumindo suas responsabilidades independentemente um do outro. Ao limitar o saber da família, a escola a afasta do processo. A escola, hoje, tem como desafio lidar com a família que sabe, que conhece seu filho, que está inserida no processo pedagógico. Precisa ainda estar aberta a conhecer cada família e a modificar-se também, se necessário.
Epstein (1990) afirma que “os objetivos de cada instituição - escola e família - são alcançados mais eficientemente quando os professores cumprem seus deveres dentro de seu próprio espaço - a escola e a sala de aula; e os pais por sua vez cumprem os seus deveres e o seu papel, mantendo as suas opiniões e críticas, dentro do seu próprio espaço - o seu lar.” O processo de envolvimento dos pais permite, de ambas as partes, o conhecimento dos ambientes nos quais as crianças interagem e, conseqüentemente, torna conscientes os objetivos familiares e escolares, o que finalmente levará à uma situação de harmonia entre a escola e a vida familiar.
É importante destacar aqui que a congruência entre família e escola é um processo, que se desenvolve à medida em que as necessidades vão sendo verificadas e que as pessoas envolvidas vão se aproximando e se conhecendo mais. O caráter flexível faz com este processo ande sempre na direção das partes envolvidas, em torno e em favor das crianças. O sucesso escolar têm sido encontrado cada vez mais neste formato.
“A educação precisa, portanto, promover mudanças profundas, a partir de uma mobilização nacional, criar um grande projeto, não centralizador mas direcionador, com base em resultados de pesquisas e debates públicos, isto é, que seja delineado de acordo com a realidade do país, de forma ampla, para permitir adaptação às mudanças advindas da sociedade mundial e nacional, mas em benefício das necessidades regionais, locais e do homem, em particular. Para viabilizá-lo, será necessário também estabelecer uma articulação horizontal e vertical e prioridades, uma vez que a educação não será capaz de satisfazer a todas as demandas advindas do mundo econômico, que exige mais e mais qualificações e competências; do mundo científico, que clama por mais apoio e recursos para a pesquisa e para a formação de pesquisadores; do mundo cultural, que solicita meios para desenvolver a escolarização e a formação geral e, finalmente, das associações de pais ou dos pais diretamente, que reivindicam educação de qualidade para os filhos...o foco de atenção deve ser o cliente da educação, não somente o aluno, mas o indivíduo - o ser humano - no seu processo de desenvolvimento, seja ele criança, adolescente ou adulto.” (Xavier, 1997)
Verificamos como, de uma perspectiva histórica, onde havia a primazia da família não havia função escolar, e ao passar a haver a primazia da escola, a família se excluíra. Hoje, os desafios do mundo pós-moderno - com seus apelos de consumo de um lado e pobreza desmedida de outro, violência, abuso sexual, fronteiras ilegíveis entre países, entre o mundo da imaginação e das informações trazidas pela tecnologia - a infância precisa estar, mais do que nunca, em foco dentro de uma unidade, multifacetada.
O desafio maior será família e criança não se curvarem à ditadura das escolas, escolas não se curvarem à ditadura das crianças e dos pais. Trata-se de ajudar a criança a transpor seus limites, a criar e a considerar o processo de educação necessário. Trata-se de família e escola acompanharem de perto o desenvolvimento infantil e atender a suas necessidades. Trata-se de respeitar o indivíduo e levar em conta mais do que a competitividade capitalista e a necessidade de ser o primeiro. Trata-se da oportunidade ímpar de formar seres humanos.


Por Fernanda Roche

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